(Gosto disto. Acho que vou continuar...)
Migalha de pretérito (quase) perfeito.
"Acordei ontem com o amanhã debaixo da língua. 'Estás gordo' - diz-me o Ego ao espelho. Concordo com ele, mas só hoje. Não tenho paciência para discutir, principalmente quando o meu interlocutor tem este aspecto. Descalço os chinelos, visto o sobretudo e saio.
Devia aprender a conduzir. Dez anos passados, ainda não sei o que fazem todas estas varetas ao lado do volante. Enquanto o carro andar e o rádio se calar quando quero pensar mais alto, tudo bem.
Estacionei numa vala e atirei as chaves ao primeiro desgraçado que por mim passou: "Descansa puto, pior do que está não fica. Vai passear mas não o leves à bola, não quero relva nos tapetes."
Passam duas horas de muito tarde quando chego ao gabinete. "Aposto que não vem ninguém" - digo para os meus botões. Só me responde o das calças, mas não tinha dinheiro nos bolsos suficiente para me convencer. A sabedoria dos botões é insondável. Segundos passados, a porta queixa-se. Tenho visitas.
'Tenho uma proposta a fazer-lhe'
-'Guarde as balas, não falo com estranhos'
'Ainda segues os conselhos dos velhotes? Já não és uma criança...'
A voz pareceu-me familiar. Ergui os olhos do jornal e encontrei um vulto encimado por um fedora - estes chapéus têm o seu quê, um dia alugo um a um manco - não via o rosto, mas a voz...
Aproximou-se com passos largos e imponentes. Não tenho medo, se me matar já não pago o aluguer nem a conta das aulas de macramé. Sentou-se na cadeira como se fosse o dono - se calhar é daí que o conheço - sacou de um cigarro, acendeu-o e deitou-o fora (ao menos poupa os pulmões). Tossiu duas vezes e disse:
'Ainda não sabes quem sou? Esperava mais de ti.'
-'Fazes bem em esperar sentado. E a proposta?'
'Sai da cidade. Aqui sobras.'
Não acreditava nisto, já tinha ouvido falar de ultimatos nas aulas de história, e repetia incessantemente ao espelho "Esta cidade é pequena demais para nós dois" quando era miúdo, armado de uma banana, a la Clint nos western spaghetti, mas este simpático troglodita redefiniu o género.
-'Vou pensar no teu caso. A porta é ali, caso já te tenhas esquecido. A idade tem destas coisas. Já agora, hoje o dia está mau para sagitários. Manda cumprimentos meus ao teu chihuahua, está bem?'
Um riso trocista entremeado a resmungo foi o melhor que ele conseguiu dar como resposta.
'Tens 5 dias.'
Quando cheguei às tiras de BD a porta fechou-se. Na mesa estava um cartão. Deve ter-se esquecido dele. Mas tinha o canto dobrado, era para mim. No pequeno rectângulo, um nome:
O patife! Oh injúria, oh ignomínia, oh opróbrio! Pensava que, depois das 03:15h de 22 de Maio de 73, ele já não existisse.
Daqui a 5 dias recebo-te com tudo aquilo que mereces. E desta vez não me esqueço dos balões nem da tarte de maçã.
Onde raio estão os meus sapatos?"
Migalha de pretérito (quase) perfeito.
"Acordei ontem com o amanhã debaixo da língua. 'Estás gordo' - diz-me o Ego ao espelho. Concordo com ele, mas só hoje. Não tenho paciência para discutir, principalmente quando o meu interlocutor tem este aspecto. Descalço os chinelos, visto o sobretudo e saio.
Devia aprender a conduzir. Dez anos passados, ainda não sei o que fazem todas estas varetas ao lado do volante. Enquanto o carro andar e o rádio se calar quando quero pensar mais alto, tudo bem.
Estacionei numa vala e atirei as chaves ao primeiro desgraçado que por mim passou: "Descansa puto, pior do que está não fica. Vai passear mas não o leves à bola, não quero relva nos tapetes."
Passam duas horas de muito tarde quando chego ao gabinete. "Aposto que não vem ninguém" - digo para os meus botões. Só me responde o das calças, mas não tinha dinheiro nos bolsos suficiente para me convencer. A sabedoria dos botões é insondável. Segundos passados, a porta queixa-se. Tenho visitas.
'Tenho uma proposta a fazer-lhe'
-'Guarde as balas, não falo com estranhos'
'Ainda segues os conselhos dos velhotes? Já não és uma criança...'
A voz pareceu-me familiar. Ergui os olhos do jornal e encontrei um vulto encimado por um fedora - estes chapéus têm o seu quê, um dia alugo um a um manco - não via o rosto, mas a voz...
Aproximou-se com passos largos e imponentes. Não tenho medo, se me matar já não pago o aluguer nem a conta das aulas de macramé. Sentou-se na cadeira como se fosse o dono - se calhar é daí que o conheço - sacou de um cigarro, acendeu-o e deitou-o fora (ao menos poupa os pulmões). Tossiu duas vezes e disse:
'Ainda não sabes quem sou? Esperava mais de ti.'
-'Fazes bem em esperar sentado. E a proposta?'
'Sai da cidade. Aqui sobras.'
Não acreditava nisto, já tinha ouvido falar de ultimatos nas aulas de história, e repetia incessantemente ao espelho "Esta cidade é pequena demais para nós dois" quando era miúdo, armado de uma banana, a la Clint nos western spaghetti, mas este simpático troglodita redefiniu o género.
-'Vou pensar no teu caso. A porta é ali, caso já te tenhas esquecido. A idade tem destas coisas. Já agora, hoje o dia está mau para sagitários. Manda cumprimentos meus ao teu chihuahua, está bem?'
Um riso trocista entremeado a resmungo foi o melhor que ele conseguiu dar como resposta.
'Tens 5 dias.'
Quando cheguei às tiras de BD a porta fechou-se. Na mesa estava um cartão. Deve ter-se esquecido dele. Mas tinha o canto dobrado, era para mim. No pequeno rectângulo, um nome:
TOBIAS
O patife! Oh injúria, oh ignomínia, oh opróbrio! Pensava que, depois das 03:15h de 22 de Maio de 73, ele já não existisse.
Daqui a 5 dias recebo-te com tudo aquilo que mereces. E desta vez não me esqueço dos balões nem da tarte de maçã.
Onde raio estão os meus sapatos?"
1 comentário:
3 pontos que quero ressalvar:
1º - Macramé foi genial;
2º - Tobias, nome de cão para arqui inimigo é de mestre;
3º - Ainda estou a pensar no gajo da urdideira, o gajo esteve mesmo qualquer coisa...
Raismaparta que não páro de rir
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