10 graus abaixo da linha d'água.
"Acordei com um piano de cauda em cima da cabeça, preso no Dó maior. Não foi do álcool, abandonei-o há dias que parecem anos. Tudo me deprime, o cinzento do dia está mais carregado, os miúdos pisam-me os calos do subconsciente quando correm para ir para a escola, as folhas caem das árvores em contra-mão, tudo me grita 'tira férias de Hoje, volta amanhã!'. Até a ironia me abandonou.
Um puto sardento aborda-me com o jornal e um 'Bom dia' que me leva a socá-lo com a psique, mas tenho a misericórdia que o Mike não teve - poupo-lhe a orelha, e vou mudo, de jornal na mão. Para o sítio de sempre. Se ele me quiser e não tiver fugido durante a noite.
Subo as escadas como se escalasse o Evereste. As chaves estão frias e aceitam a custo a entrada na fechadura. A porta range, tenho um quadro torto na parede. Perfeito.
Tive visitas. A janela está partida, os armários estão abertos, já não tenho café e alguém fez o sudoku de ontem. Como qualquer ladrão que se digne, fez o favor de espalhar todos os ficheiros no chão e pintar na parede "Não fui eu". Antes de olhar para o telefone, oiço ao longe o canto da sereia dos senhores de azul.
Sentei-me na cadeira a apreciar o cenário. Devia ter trazido pipocas.
'E então, o que se passou aqui?'
-'Saldos. Mas já chega atrasado.'
'Tens noção de quem possa ter feito isto?'
-'Quem anda no ramo arrisca-se a ficar feito em palitos. Mas quem é que vos chamou?'
'Por acaso ninguém, vinha falar contigo sobre um caso. Tens café?'
-'Na loja.'
'Optimo, vou mandar o miúdo novo.'
Saí pela janela e sentei-me nas escadas de incêndio enquanto os agentes tiravam fotografias ao escritório. Ao longe as gaivotas desenhavam linhas irregulares no horizonte. Em baixo os carros passavam, quais formigas indiferentes à estagnação do mundo, com rumos diferentes mas destino igual. A voz rouca do Comissário interrompeu-me a divagação.
'Queres apresentar queixa?'
-'Ao Karma, por agressão.'
'Tens inimigos demais, um dia...'
-'Devia conhecer os meus amigos. Esses sim, são perigosos.'
'Pois. São imaginários.'
-'Nada é mais perigoso que uma mente inquieta.'
'Essa frase é tua?'
-'É do Universo. Eu só juntei as letras.'
O silêncio imperou durante largos minutos até o café chegar. E então ele disparou:
'Preciso da tua ajuda.'
-'Amanhã falamos. Hoje é um dia com defeito, sem direito a troca.'
'Como todos os outros... até amanhã"
Contei os segundos até o Sol se esconder.
35
36
37
... Negro.
Como hoje"
"Acordei com um piano de cauda em cima da cabeça, preso no Dó maior. Não foi do álcool, abandonei-o há dias que parecem anos. Tudo me deprime, o cinzento do dia está mais carregado, os miúdos pisam-me os calos do subconsciente quando correm para ir para a escola, as folhas caem das árvores em contra-mão, tudo me grita 'tira férias de Hoje, volta amanhã!'. Até a ironia me abandonou.
Um puto sardento aborda-me com o jornal e um 'Bom dia' que me leva a socá-lo com a psique, mas tenho a misericórdia que o Mike não teve - poupo-lhe a orelha, e vou mudo, de jornal na mão. Para o sítio de sempre. Se ele me quiser e não tiver fugido durante a noite.
Subo as escadas como se escalasse o Evereste. As chaves estão frias e aceitam a custo a entrada na fechadura. A porta range, tenho um quadro torto na parede. Perfeito.
Tive visitas. A janela está partida, os armários estão abertos, já não tenho café e alguém fez o sudoku de ontem. Como qualquer ladrão que se digne, fez o favor de espalhar todos os ficheiros no chão e pintar na parede "Não fui eu". Antes de olhar para o telefone, oiço ao longe o canto da sereia dos senhores de azul.
Sentei-me na cadeira a apreciar o cenário. Devia ter trazido pipocas.
'E então, o que se passou aqui?'
-'Saldos. Mas já chega atrasado.'
'Tens noção de quem possa ter feito isto?'
-'Quem anda no ramo arrisca-se a ficar feito em palitos. Mas quem é que vos chamou?'
'Por acaso ninguém, vinha falar contigo sobre um caso. Tens café?'
-'Na loja.'
'Optimo, vou mandar o miúdo novo.'
Saí pela janela e sentei-me nas escadas de incêndio enquanto os agentes tiravam fotografias ao escritório. Ao longe as gaivotas desenhavam linhas irregulares no horizonte. Em baixo os carros passavam, quais formigas indiferentes à estagnação do mundo, com rumos diferentes mas destino igual. A voz rouca do Comissário interrompeu-me a divagação.
'Queres apresentar queixa?'
-'Ao Karma, por agressão.'
'Tens inimigos demais, um dia...'
-'Devia conhecer os meus amigos. Esses sim, são perigosos.'
'Pois. São imaginários.'
-'Nada é mais perigoso que uma mente inquieta.'
'Essa frase é tua?'
-'É do Universo. Eu só juntei as letras.'
O silêncio imperou durante largos minutos até o café chegar. E então ele disparou:
'Preciso da tua ajuda.'
-'Amanhã falamos. Hoje é um dia com defeito, sem direito a troca.'
'Como todos os outros... até amanhã"
Contei os segundos até o Sol se esconder.
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37
... Negro.
Como hoje"
1 comentário:
és um poeta...um poeta!
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