terça-feira, fevereiro 10, 2009

Dia 62 - cá vai...

(Não faço ideia de como numerar estes novos episódios, mas para já fica assim. Aceitam-se sugestões)

Um dia de Inverno

"Nevava na bola de neve da minha mesinha de cabeceira. Já tinha visto tantas vezes Paris que achei por bem comprar um texugo. Ele não quis sair de lá, teve medo de abandonar a baguette com quem partilhava um bolso para dois com vista para os Élysées, por isso deu-me este pequeno souvenir, que nevava quando eu queria. Se S.Pedro soubesse processava-me.

Acordei porque estava frio e doíam-me os pés, descobertos há 30 anos no mesmo sítio onde o tempo me achou. O cheiro a tabaco e a whisky habitavam o meu guarda-roupa. "Deve ter sido do encontrão que o chapeleiro me deu ontem quando ia para o ténis." - pensei. Mas não havia tempo a perder com lamúrias, era hora de voltar ao quartel-general da minha solidão.

Despedi-me de casa sem deixar um bilhete - ela sabia que voltaria - e fui para o meu escritório, abraçado ao sobretudo. Dois "olás", um "desculpe" e sete "com licenças" depois, estava sozinho.
Abri o jornal de Setembro para saber do basebol. "Não é desta que percebo as regras", deitei-o fora. Ao canto, o velho vinil do "Sammy" repetia insistentemente a mesma música. Pelo menos era isso que o vizinho dizia. Nunca gostei dele, por isso não liguei.

Ela bateu à porta.

Duas vezes.

Três.

Quatro.

A porta, masoquista, devolveu-lhe os afectos até a porteira os separar.

'É a terceira vez esta semana, rais' parta! A senhora, quer falar com o senhor?'

O gemido parecia confirmar-lhe as suspeitas.

Negra como um trovão em noites de platina, inundou com a sua sombra o deserto dos meus sonhos.

-'Que queres?'

'...'

-'Se as respostas não estão contigo, a saída espera-te.'

'Não te lembras de mim?'

-'O filho não é meu.'

'Não é isso, olha bem para mim!'

-'O vermelho fica-te bem, mas prefiro o preto e branco. É mais variado'.

'Isto é fucsia'

-'Fuc...U2'

'Eu até gosto deles, mas deixemo-nos de conversa...'

-'Muito bem. Adeus'

Antes de regressar aos quadrados do sudoku um sapato atingiu-me as têmporas e derrubou os 5 e os 3. Facilitou o jogo, mas a concentração já era. É por isso que não bebo água.

-'Calço o 42, mas obrigado na mesma. Podes mandar o outro?'

Por uma questão de respeito, prefiro omitir a panóplia de palavras meigas com que fui baptizado. No reino da verborreia, ela seria Rainha. Eu seria o cavaleiro que saiu 15 anos antes, para comprar tabaco.

Três horas depois, calou-se, respirou fundo e contou-me o que se passara. Nove palhaços roubaram-lhe os trinta gatos e fugiram num micro-Carocha laranja, pouco maior que o seu congénere de linhas. Deixaram-lhe apenas o mais feio, por este se recusar a ir na mala.

Apontei o caso na agenda, liguei aos palhaços e disse-lhes para devolverem os felinos e não deixarem o meu contacto em casa das pessoas que assaltam. O funâmbulo concordou.

Lágrimas de ternura eram evidentes no seu rosto de ébano quando me ouviu terminar a conversa. Deu-me a mão direita e eu devolvi-lhe o sapato.

"-Dedica-te aos bonsai. São mais fiéis."

"Não percebo japonês"

-'Compra um com legendas. Ou radicado aqui'.

Há dias em que devia ficar na cama e tapar os pés."

2 comentários:

OMal disse...

Tu és bom, pá!

Há_Dias disse...

Foi a coisa mais genial que li em toda a minha vida... Tirando aquele senhor da urdideira...

Brilhante!