quinta-feira, fevereiro 19, 2009

Dia 65 - o lado "noir"

10 graus abaixo da linha d'água.

"Acordei com um piano de cauda em cima da cabeça, preso no Dó maior. Não foi do álcool, abandonei-o há dias que parecem anos. Tudo me deprime, o cinzento do dia está mais carregado, os miúdos pisam-me os calos do subconsciente quando correm para ir para a escola, as folhas caem das árvores em contra-mão, tudo me grita 'tira férias de Hoje, volta amanhã!'. Até a ironia me abandonou.

Um puto sardento aborda-me com o jornal e um 'Bom dia' que me leva a socá-lo com a psique, mas tenho a misericórdia que o Mike não teve - poupo-lhe a orelha, e vou mudo, de jornal na mão. Para o sítio de sempre. Se ele me quiser e não tiver fugido durante a noite.

Subo as escadas como se escalasse o Evereste. As chaves estão frias e aceitam a custo a entrada na fechadura. A porta range, tenho um quadro torto na parede. Perfeito.

Tive visitas. A janela está partida, os armários estão abertos, já não tenho café e alguém fez o sudoku de ontem. Como qualquer ladrão que se digne, fez o favor de espalhar todos os ficheiros no chão e pintar na parede "Não fui eu". Antes de olhar para o telefone, oiço ao longe o canto da sereia dos senhores de azul.

Sentei-me na cadeira a apreciar o cenário. Devia ter trazido pipocas.

'E então, o que se passou aqui?'

-'Saldos. Mas já chega atrasado.'

'Tens noção de quem possa ter feito isto?'

-'Quem anda no ramo arrisca-se a ficar feito em palitos. Mas quem é que vos chamou?'

'Por acaso ninguém, vinha falar contigo sobre um caso. Tens café?'

-'Na loja.'

'Optimo, vou mandar o miúdo novo.'

Saí pela janela e sentei-me nas escadas de incêndio enquanto os agentes tiravam fotografias ao escritório. Ao longe as gaivotas desenhavam linhas irregulares no horizonte. Em baixo os carros passavam, quais formigas indiferentes à estagnação do mundo, com rumos diferentes mas destino igual. A voz rouca do Comissário interrompeu-me a divagação.

'Queres apresentar queixa?'

-'Ao Karma, por agressão.'

'Tens inimigos demais, um dia...'

-'Devia conhecer os meus amigos. Esses sim, são perigosos.'

'Pois. São imaginários.'

-'Nada é mais perigoso que uma mente inquieta.'

'Essa frase é tua?'

-'É do Universo. Eu só juntei as letras.'

O silêncio imperou durante largos minutos até o café chegar. E então ele disparou:

'Preciso da tua ajuda.'

-'Amanhã falamos. Hoje é um dia com defeito, sem direito a troca.'

'Como todos os outros... até amanhã"

Contei os segundos até o Sol se esconder.




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... Negro.

Como hoje"

1 comentário:

Há_Dias disse...

és um poeta...um poeta!